quinta-feira, maio 10, 2007


Já escrevi sobre alguns dos tiques e manias de um dos radiologistas com quem mais gosto de estar. Com ele a animação é permanente. Está sempre em cima da jogada. Pelo humor, pela espontaneidade e pela diferença. É judeu. Como quase todos. Um solteirão de quarenta e poucos anos. Bisneto de uma antiga actriz húngara. De teatro yiddish. Que no início do século passado terá viajado pela Europa. Com várias conquistas. Fama e proveito.

Ouvir um judeu falar da família, de tudo o que anteceda o Holocausto é raro. Segundo me disseram. Falam que são originários da Ucrânia, Polónia, Israel, Alemanha e pouco mais. Não sei se não gostam de falar ou recordar.

Penso que recordar, recordam sempre. Aliás não deve haver povo com a memória familiar e colectiva dos judeus. Algo que não deixo de considerar. Li há poucos dias algo do antigo rabino de Lisboa e das chaves que a família passava de geração para geração. Descendente dos antigos judeus expulsos pela a cegueira da Inquisição, a sua família foi sempre recordando o passado e alimentando a história. E de lugar para lugar, buscavam sempre a antiga casa lisboeta. A casa da qual guardavam simbolicamente as chaves, transmitindo-a sucessivamente. E mesmo quando pequeno e ainda longe de pensar que alguma vez voltaria a Portugal a sua avó tratava-o ternamente por portuguesinho.

Por isso ainda apreciei mais o almoço. Sentado à mesa de uma lanchonete. O que é um luxo nesta cidade. Mas o homem queria mesmo falar da avó. E das novidades que soube nestes últimos dias. Um investigador italiano contactou a irmã, inscrita num daqueles sites de genealogia. Queria saber mais da história do apelido, vínculos, relações e histórias cruzadas. Algo que consubstanciasse o flirt que a linda senhora terá tido com um dos mais conhecidos escritores do século passado, quando passeou pelas ruas de Praga. Franz Kafka, era o seu nome. E sabendo estas novidades bombásticas, o médico passou a semana em investigações febris. Com base em jornais de época, artigos vários, alguns deles comprados pela Net, chegou a ver fotografias da bisavó, então figura de cartaz. E espera agora consultar um catálogo da Biblioteca de Nova Iorque. Como perguntava ontem, “É o mundo que é pequeno ou Nova Iorque muito grande?”

Mas parte da piada do almoço foi perceber que o dito médico pode ter herdado alguns dos genes de Kafka. Pelas suas manias e tiques. Pelo seu raciocínio tão brilhante como retorcido. Dum doutorado em física. Escola médica de Harvard. E atitudes verdadeiramente idiotas. Conta ele que quando mudou de apartamento, os porteiros terão descoberto que era médico. E toca a ter aquelas conversas das maleitas, as dores de costas, as cunhas para os amigos doentes. Ele quis que achassem que era um médico autista, daqueles do laboratório, que tem mais confiança com cobaias e placas de petri do que com doentes. Pretendia o anonimato e não que controlassem as suas entradas e escapadelas (!). Por isso começou a actuar como um débil mental. Entra sempre a olhar para o chão, olhos fixos, encostado à parede, com menear fixo, passos arrastados e nervosos. Finge que se assusta sempre que o elevador toca, anunciando a chegada. Mesmo quando quer saber do correio, pergunta algo de inteligível, tipo co-co-rrrr-eeee. O disfarce idiota é tal que quando vai acompanhado para casa, tem que avisar antecipadamente as visitas. Estão a imaginar a cara dos romances de ocasião com aquele espectáculo todo. É caso para afugentar qualquer conquista...

1 comentário:

Anónimo disse...

"O que distingue o homem são de um alienado é precisamente que o homem são tem todas as doenças mentais, e que o alienado tem apenas uma!"

Robert Musil