sexta-feira, março 31, 2006

Estou a aguentar-me. São já 20.30 e ainda estou para as curvas... Isto é, já tenho algum sono. Hoje foi o meu primeiro dia de hospital a sério. Estive na sala de leitura dos exames de abdominal. Com os fellows e com os attendees, ou especialistas. Os fellows e residentes viam os exames e os especialistas andavam à volta deles a rever tudo.

Na prática são muito rigorosos. Com atenção ao pormenor. Mas o fellow com quem estive devia ser para o fraco. Para além de lento. Apetecia-me dar-lhe uns cachaços no cocuruto para ver se espevitava. Tinha um cabelinho muito direitinho, extremamente formal, um postal no fundo. De gravata claro. Já os internos me pareceram melhores (onde é que eu já vi isto? ah ah ah). E claro os outros fellows. Mas segundo o António, esse tal fellow é "meio para o estranho"...

Mas os pequenos detalhes, como agora está na moda os futebolistas e treinadores, é que fazem a diferença. As artérias acessórias e afins, algo para o qual quase nunca prestamos atenção.... E a preocupação de ligar para o clínico para questionar determinada informação clínica, se seria compatível com o diagnóstico.

Quanto à reunião de internos, veio um especialista de outro hospital com casos clínicos. Quatro por interno. De todas as áreas. Pode-se dizer que alguns dos internos eram mesmo prolixos, desatavam logo a descrever o exame, a estabelecer o diagnóstico diferencial e afim. Mas às vezes era um bocadinho exagerado. Se o diagnóstico estava chapado porque não dizê-lo logo? Penso que acertaríamos nos casos nas nossas reuniões de internos. Mas é natural que eles tenham que dar resmas de diagnósticos diferenciais. Não podem correr o risco de errar. O tribunal está logo ali à espreita...


Fui almoçar pelas duas da tarde, quase a cair. E voltei depois para a sala de leitura até as 17.30.

Vim para casa, vagueei pela net e toca a ir às compras. Pelo supermercado onde existem claramente duas ou três paranóias. Uma é o anúncio de tudo o que é alimento de origem natural, orgânica, químicos -free . A outra é a abundância de produtos light, sem calorias e sucedâneos. Mas o que realmente impressiona é o tamanho das embalagens. Do leite, às batatas fritas, aos iogurtes, às bebidas, tudo é extra-large. Ou maior ainda... No supermercado que fui era quase tudo maus aspectos. E o funcionário da caixa deveria ter uns 124 anos, bem preservados.

Estou já jantado. Foi o meu primeiro dia na cozinha. Soube bem. Sabe sempre bem. Mesmo tendo esquecido de comprar o sal!!! Aceitam-se voluntários para arrumar a cozinha... Sem a batota de pôr a louça na máquina.

Vou tentar ver os Closers... Se não o Miguel fica desapontado.

Ah... é verdade, estes americanos são mesmo tolos. Não é que hoje era feríado. Estadual ou algo do género. Em honra de um Cesar Chavez. Mas para eles há feriados e feriados... Hoje era um do tipo administrativo. Assim os clínicos trabalhavam mas o secretariado e as repartições públicas estavam fechadas.

quinta-feira, março 30, 2006

Já estive no hospital, já mudei de casa, já fui às compras. Já tratei uma gripe.
Já tenho telefone 415 682 9470.
Já tenho morada : 1221A, 2nd Ave. San Francisco, CA 94122 c/George Linke
Já tenho senhorio, George Linke, um alemão com um inglês impecável...
Já tive uma reunião de 2 horas com o departamento de relações internacionais. Eu e mais 8 J-1 visa alliens. A UCSF tem mais de 1500 estrangeiros de mais de 70 países diferentes. Mesmo na radiologia, se formos a ver a origem dos especialistas é um autêntico melting pot. O chefe de abdómen é irlandês. Pareceu-me novo. Foi simpático. Aliás todos os especialistas foram corteses. E o António, o brasileiro com quem vou estar mais tempo, foi impecável. Fui almoçar com ele e com a mulher, também ela brasileira, radiologista, a trabalhar em tórax. Quem estava com ela era a Jennifer, uma canadiana amiga do vosso conhecido José Miguel, que ficou vermelha quando eu disse que já a conhecia de ter visitado o Porto... Ooooopss.
Já andei a namorar uns livros. Já comi várias vezes comida italiana. Aliás, junto ao hospital existe um pátio com vários restaurantes. Italianos, tailandeses e tudo o resto que é comida esquisita... Nem um com uns bolinhos de bacaulhau, uns croquetes e uma aguardente.
Quanto à cidade.... não para de chuviscar. Hoje não deu para passear. Só para reparar que numa paragem de autocarro estava anunciada uma fotografia com o polícia do mês!!! E ver todos os médicos, enfermeiros e afins a passear nas redondezas do hospital de bata, fato do bloco, sapatos de bloco, touca... O almoço deles pode ser numa reunião qualquer, nas escadas do hospital, numa qualquer esquina, em pé, a fazer o pino ou sentados.

Começam aqui os escritos de um emigrante em São Francisco. Um alien como dizem nos serviços de imigração... Tentarei contar sobretudo as peripécias de um radiologista em projecto por esta cidade algo especial da Califórnia. E será em formato de blog por forma de ocupar o tempo e também poupar tempo. Resumirei em blog, o que poderia ser enviado por e-mail.
Este formato tem também vantagens pois permite o comentário. E a discussão. Espero já o comentário irónico do Dr Nélson, o assertivo do Miguel e temo o disparatado da Lina...


Escrevo pela madrugada. São 6 horas. O jet lag tem-me cobrado umas horitas. Adormeço pelas 20h e acordo pelas 5horas. Ouço Antony and Johnsons. Estou deitado na cama do hotel... Bastante barulhento, por sinal. Sobretudo quando passa o eléctrico, ou metro de superfície, o Muni. Tudo estremece à volta com a sua passagem, as ruas, as casas, mas sou eu o único que ainda olha assustado.

A viagem foi algo penosa, sobretudo porque não sabia bem a duração nem quando chegava. Num estado algo estupuroso de sono, fiz dezenas de contas para qualquer quantas horas faltavam. Tipo menino pequeno. E das dezenas de vezes consegui errar. Achava sempre que faltava menos...

Fazer a viagem com dois franceses antipáticas e provavelmente maricas de um lado não aquece nem arrefece. Mas fazer com um americano motoqueiro, de lenço na cabeça, bigodaço, mal cheiroso, com colete de couro, sem mangas, cheio de bugiganga que estremecia a cada suspiro, com dísticos referentes ao Vietname e Iraque ("se se aproximarem menos de 100 m disparo escrito em inglês e árabe...) e com algum dedos entre os inúmeros anéis de caveiras, cobras e restante parafernália, com as inevitáveis tatuagens, é espectacular. Sobretudo o cheiro. Vá lá que ao fim de duas ou três horas já estava anestesiado. Na primeira hora tive que sair do lugar e passear. Tudo me cheirava aos pés do camone. Mas duas horas depois deixei de sentir qualquer incómodo. Maravilhas da natureza humana!!!

Mas não bastava isso. Como passou a viagem toda a dormir, não conseguia passar por ele para ir à casa de banho... Então imaginem a cena do Ruizinho a abrir as suas pernas para passar em cima dele, sempre com medo de lhe tocar e acordar...



O resto da viagem tem pouco mais que contar que a televisão do meu compartimento do avião estava avariada. O que ajudou ainda mais a passar o tempo... e a contar as horas para saber o resultado do Barcelona!



A primeira impressão da cidade, vista por uns olhos cansados (sim e lentes de óculos sujas) e por detrás dos vidros do shuttle bus, foi que seria algo dura, hostil, com imensos hispânicos e afro-americanos (!) parados nas esquinas. Mas essa perspectiva desvaneceu-me imediatamente quando cheguei à zona onde vou ficar a morar.



Tem o aspecto de aldeia pacata, com os residentes a passear os seus cães, a fazer o jogging ou ouvir os seus Ipods. Com alguma dificuldade em olhar para as pessoas que passam. Sim, ninguém olha para ninguém. Não se estabelece qualquer contacto visual. Tenho a certeza que nem com o meu gorro de Equador seria notado. Já não basta a camisa por fora, o colarinho desarranjado e os cordões desapertados. Vou ter que andar com a berguilha aberta e mesmo assim...



Entretanto vaguei já pela zona em redor da UCSF, o pólo da faculdade de Medicina e pela USF, o polo das restantes faculdades. PAssei ainda pela Haight Street onde cheirou a zona de São Francisco dos seus tempos hippies.



Dizer cheirar não é favor, dado que o cheiro a haxixe, passeava pelas ruas... Sai por trás das lentes azuis dos óculos de um qualquer hippie com idade para ser avô, ou das lojas de "fumo". Da livraria de livros anarquistas (sim, chamava-se mesmo assim).



Aprendi que as asiáticas são mais bonitas que as americanas nativas. Que todas elas gostam de andar de chinelito, mesmo estando a chover. Que estão sempre a falar ao telemóvel. Que existem bolas de golfe nas sarjetas. Que um postal andava pela rua a fazer contas com a máquina de calcular. Que existem imensas lavandarias automáticas. Que existe um respeito sagrado pelos peões. Que existem numerosas lojas de roupa e livros usados.