segunda-feira, junho 12, 2006

Revista de Imprensa

Rui Tavares - Público - 10 de Junho

A estupidez do racista não é uma estupidez qualquer. É uma estupidez monumental: tem escadaria e dez quartos-de-banho, dá muito trabalho a manter. Qualquer distracção e poderia ficar-se mais inteligente.

Passam hoje onze anos sobre o assassinato de um português mulato, Alcino Monteiro, às mãos de um bando de racistas.

É hábito da imprensa descrever Alcino Monteiro como “cidadão cabo-verdiano”. Isto é incorrecto. Alcino Monteiro era cidadão português, por naturalização, com Bilhete de Identidade e até serviço militar feito nas Forças Armadas deste país. Outras vezes aparece descrito como “de origem cabo-verdiana”, e fica insinuado que foi esta a motivação do assassinato de que foi vítima. Mas não foi por ser “de origem cabo-verdiana” que mataram Alcino Monteiro: se ele fosse cabo-verdiano e branco não lhe teriam tocado. Alcino Monteiro era português e foi assassinado por outros portugueses que não gostavam da cor da sua pele.


Desde que Alcino Monteiro foi assassinado que a imprensa não consegue acertar num facto simples como este. Quando se esconde a motivação do crime por detrás de eufemismos como “origem cabo-verdiana” ou “cidadão cabo-verdiano”, não só a informação vai errada como se está a espoliar uma vítima da nacionalidade que ganhou com trabalho e esforço. É uma reviravolta com tons de injustiça. Cheguei a ver um artigo em que Alcino Monteiro era descrito como “cidadão cabo-verdiano” ser ilustrado pela foto de um dos seus documentos, onde se lia: “República Portuguesa – Bilhete de Identidade de Cidadão Nacional”. Ou seja, Alcino Monteiro era tão português como, provavelmente, o jornalista que escrevia o artigo e que nem com o documento à frente dos olhos conseguia vencer a força do preconceito — se tem a pele escura — se tem sotaque — então não pode ser bem português.

Nesta semana apareceu na televisão um dos assassinos de Alcino Monteiro. Os tribunais provaram que no dia 10 de Junho de 1995 aquele homem, de seu nome Mário Machado, correu em bando pelo centro de Lisboa pondo em prática a definição do “crime de ódio” que alguns insistem que não existe: atacar, espancar e molestar exclusivamente negros e mulatos, deixando em paz os brancos.

Mário Machado diz que tem “orgulho em ser português”. Mas, ao contrário de Alcino Monteiro, não fez o menor esforço para tal. Diz que tem “orgulho em ser branco”. Tal como Alcino, Mário não tem a menor responsabilidade na sua cor de pele; isso não impediu Mário e outros de espancar Alcino até à morte.

Há quem diga que Mário Machado é apenas dono de uma enorme estupidez. É muito difícil contrariar tal conclusão quando o próprio mostra à TV uma arma que, com o seu cadastro, não pode possuir, diz que tem licença de caça mas que tenciona usá-la nas ruas, e depois explica que a arma, que sempre refere como sendo sua, está em nome da mulher. Até o mais sonolento dos juízes desmonta esta fraude mal amanhada.
Na reportagem, um dos seus comparsas define ainda melhor a coisa: “há gajos que sabem cantar”, afirma, “eu não sei cantar, só sei andar à porrada”. Quando não se sabe nada de nada, resta o racismo.

Conceda-se, no entanto, que a estupidez do racista não é uma estupidez qualquer. É uma estupidez monumental: tem escadaria e dez quartos-de-banho, dá muito trabalho a manter. Qualquer distracção e poderia ficar-se mais inteligente. Logo, há que estar sempre alerta: a estupidez tem de ser mantida a todo o custo, isolada e protegida pela estupidez de outros iguais a ele. Para isso é preciso, até, uma certa dose de esperteza: para esconder ou mostrar as tatuagens da suástica no momento certo, para aproveitar a TV esperando que outros cometam os crimes por ele, para fundar pseudo-partidos com organizações para-militares escondidas, para contar com a complacência da sociedade.

Hoje é ainda data de outro aniversário. Dez anos depois do assassinato de Alcino Monteiro, a mesma imprensa que ainda não conseguiu acertar na nacionalidade da vítima, e que usa de eufemismos para falar da motivação do crime, foi rapidíssima a noticiar um arrastão que não aconteceu. Aí, a cor da pele estava já por todo o lado, até onde o seu valor como informação era igual a zero. Num debate organizado anteontem sobre este assunto (ver Público, secção Media, de ontem) o director de informação da Lusa contou que as imagens de Carcavelos foram recebidas nas redacções “com muita euforia” e noticiadas de imediato, sem confirmação, apesar de “apenas com muita imaginação se poder ver ali um arrastão”. Estas notícias deram uma oportunidade de ouro aos racistas como Mário Machado para saírem da toca, passados dez anos, e organizarem pela primeira vez manifestações que ainda um dia vão acabar mal. Nas palavras de Joaquim Fidalgo, moderador do debate, “os jornalistas erraram e não pediram desculpa”.

São, na verdade, muito densos e contraditórios os sentidos acumulados sobre o 10 de Junho, desde que começou a ser comemorado como data da morte de Luís de Camões. Dá que pensar, mas é melhor que os nossos racistas não se metam nisso. Camões é um símbolo do amor à pátria que só poderia deixá-los humilhados. Afinal, é um desses gajos que “sabia cantar”: era culto e viajado, gostava de poesia e sabia escrevê-la como ninguém, tinha tudo o que eles não têm. Se as crónicas não erram, morreu há exactamente 426 anos. Velado pelo seu mais fiel amigo, o único capaz de o acompanhar literalmente desde o outro lado do mundo, e a quem chamavam Jau, talvez por ser da ilha de Java. Era um estrangeiro e imigrante, portanto, o melhor amigo de Camões. E uma coisa é certa — não era branco.

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